quarta-feira, 30 de julho de 2008

Boumediene v. Bush: redescobrindo o significado da Constitiução americana

Não é a crise que determina o significado de uma Constituição, mas é o modo como são tratadas as questões constitucionais em momento de crise que definem se o país tem uma Constituição para valer.

Não é segredo para ninguém: os Estados Unidos da América sob a Presidência do impopular Presidente Georg W. Bush (desde já cotado entre os piores da história) estão em crise.
Todo mundo sabe que a economia dos EUA anda em crise, mas é a crise política que vem impondo os maiores desafios ao direito constitucional americano. Não é a primeira crise dos EUA, que já sofreu pelo menos três graves crises, nem será a última. Das anteriores, o povo americano saiu vitorioso e o império do direito prevaleceu e esta é uma das razões pelas quais os EUA são os EUA.
Uma cultura pulsante capaz de produzir em quantidade grande arte e conhecimento precisa de liberdade para o artista e para o cidadão. No final das contas, o Estado não tem como saber se um cidadão obscuro e tímido vai ser o novo Mailler, Poe, Capotte ou Pollock. Num ambiente sem liberdade, estes seriam cidadãos indesejados...
Por isto, sem um ambiente político livre que garanta as liberdades civis não se produz muita arte, mas para que se garantam estas liberdades precisa-se mais ainda de um sistema político e constitucional que garanta de um modo geral os direitos do cidadão...
De vez em quanto, mesmo os sistemas mais desenvolvidos e que melhor respeitam os direitos dos seus cidadãos, tem o seu sentido e a sua consistência desafiada. É o que vem acontecendo nos EUA depois do atentado de 11 de setembro de 2001: cidadãos presos sem acusação formal, sem possibilidade de recorrer a um Tribunal para garantir a sua liberdade e a legalização da tortura. Este é o triste legado de Osama Bin Laden e da administração chefiada por George W. Bush.
Mas a Suprema Corte, mesmo com a nova configuração 'Bushiana', que vem impondo mudanças radicais e uma guinada conservadora em sua Jurisprudência , vem dando um basta ao abusos do poder desproporcional do Executivo Federal Americano.
Primeiro, em 2004, no caso Hamdi v. Rumsfeld, o Tribunal decidiu, por 5x4, que os Estados Unidos tinham autoridade para capturar e deter pessoas durante o conflito no Afeganistão que se submeteriam a um devido processo legal mitigado em Tribunais Militares. No mesmo dia, em Rasul v. Bush, a Suprema Corte decidiu que os presos em Guatânamo, território americano em Cuba, tinham o direito de ingressar com Habeas Corpus no Judiciário americano.
Finalmente, em Boumendiene v. Bush, mais uma derrota histórica: por 5x4 a Suprema Corte dos EUA decidiu que os presos, nacionais ou estrangeiros, que forem detidos por atos de terrorismo pelo Governo dos EUA poderão ter a legalidade de suas prisões contestadas em Tribunais americanos.
A decisão é histórica porque o 'Senhor da Guerra' não tem mais o poder para, sob o pretexto de combater o terrorismo, manter um nacional ou estrangeiro preso indefinidamente sem acusação formal: o declarado 'inimigo' pode ir aos Tribunais dos EUA para discutir a legalidade de sua prisão.
Pode parecer pouco, mas um soldado ou um oficial das forças armadas bem sabe o seu significado: os EUA, nem fora do seu território e contra cidadãos estrangeiros, pode agir como 'ave de rapina'. No Estado de Direito todos estamos, ou deveríamos estar, submetidos ao único império que importa respeitar: o império do direito. Quando o Judiciário do único império ainda existente, resolve reconhecer publicamente e impositivivamente esta lição contra o status quo só temos razões para comemorar: não é à toa que a ala imperialista chamou a decisão de catastrófica.
Na grande tensão do Estado Democrático de Direito entre o poder hipertrofiado do Executivo (para garantir a segurança, a rede de proteção social e a intervenção nas grandes catástrofes) e a necessidade de controlar este poder para que ele seja exercido sempre com justiça uma decisão que garante mais direitos para o cidadão em desfavor de atos arbitrários do Estado ainda o mais poderoso do mundo é uma vitória da cidadania.
O constitucionalismo americano está sendo desafiado e a balança parece voltar a se inclinar, por enquanto, para a proteção do cidadão e esta não é só uma vitória dos EUA, mas da democracia.
Agora, falando nisso, como está se comportando a nossa Corte Suprema nos casos em que tem sido desafiado o constitucionalismo brasileiro: tenho sérias dúvidas se estamos seguindo o caminho certo, mas esta questão fica para outro texto.
Quem quiser saber mais, Ronald Dworkin conta porque foi uma grande vitória, no artigo Why it Was a Great Victory, no volume 55, número 13, da edição de Agosto de 2008 da New York Review of Books. Por enquanto, o artigo é livre e gratuito no site da NYBooks: http://www.nybooks.com/articles/21711

A decisão completa, do caso Boumediene v. Bush, está no site da Suprema Corte dos Estados Unidos: http://www.supremecourtus.gov/opinions/07pdf/06-1195.pdf

terça-feira, 29 de julho de 2008

Perfume: um filme inodoro



Se você não tiver nada para fazer em um domingo à tarde e vier a ligar a TV a cabo, não perca seu tempo: não assista "Perfume" de Tom Tyker!
Os produtores gastaram uma fortuna para fazer, Das Parfum - Die Geschichte eines Mörders, o filme alemão mais caro de todos os tempos e o resultado é um tremendo desperdício de tempo e de dinheiro.
Mas como até um filme ruim é capaz de nos fazer pensar fiquei com duas dúvidas: 1) os produtores acreditam que fizeram um bom filme? 2) Por quê as pessoas assistem a um filme ruim?
Os produtores devem acreditar que fizeram um bom filme já que investiram altas somas; difícil é entender o significado de "bom" para eles. Na estética contemporânea, o belo pode ser até o feio inovador: les demoiselles davingnon de Picasso chocou o mundo por sua 'feiura' quando surgiu, mas aí é outra história.
Como quem gasta muito para fazer um filme está geralmente mais preocupado com o retorno financeiro que o filme vai dar do que com a qualidade estética da obra, a resposta é mais simples: bom é o que faz sucesso. Se o filme for bem de bilheteria, o filme é bom; como perfume não foi um fracasso de vendas, Eureka: um filme vendável não pode ser considerado exatamente ruim.
Mas para que o filme tenha sido muito assistido alguém tem que ter gostado ou, pelo menos, se interessado pelo filme a ponto de ir ao cinema e pagar a entrada, nem que tenha sido para largar o filme no meio... Eu, estando em casa, não exerci o meu poder de mudar de canal: até hoje me arrependo.
No mesmo domingo, conversei a noite com parentes que tinham assistindo ao mesmo filme durante a tarde e eles disseram a mesma coisa: "não gostei do filme"!
E aí fiquei ainda mais intrigado: já que não estou louco e outras pessoas tiveram a mesma opinião sobre o filme o que é que os outros (os que pagaram o ingresso e fizeram a propaganda 'boca a boca') viram...
Até agora estou tentando descobrir, mas só consegui lembrar de Platão: os muito bons são muito poucos a maioria é mediocre.
Não sei se a maioria é mediocre, mas que tem muita coisa ruim que faz sucesso isso tem; Perfume é só um exemplo. E aí fiquei com minha segunda questão, matutando, por que temos uma inclinação tão grande para gostar do que é ruim mesmo sabendo que é tão ruim.
Não tenho uma resposta 'exata', mas, ainda assim, tenho uma resposta: o ruim faz sucesso por que não incomoda o observador por ser trivial demais para fazer pensar.
Um filme é mediocre em razão da sua trivialidade, da sua incapacidade de surpreender o espectador: o desenrolar da história não nos abala por ser esperado que aconteça automaticamente ou porque não emociona.
Mas nada na vida pode ser considerado automático: até mesmo o mais trivial acontecimento esconde possibilidades profundas pois o homem possui um toque de midas que transforma nele mesmo tudo que toca, vê ou ouve.
Um intérprete medíocre fará uma leitura medíocre de um obra de arte; um gênio desvenderá significados profundos até mesmo em uma obra medíocre.
Mas a obra deve ser avaliada por seu próprio valor: se Shakespeare transforma uma historinha de amor antiga e trivial em uma obra atemporal, como em Romeu e Julieta, é a peça que tem um grande valor não a historinha: foi shakespeare quem tirou 'leite de pedra' e a transformou em diamante.
Mas se temos tantos diamantes (artísticos, literários e cinematográficos) para apreciar por que perder tempo com pedras sem valor...
Talvez porque não se passe impune por uma grande obra de arte. Na vida, tudo que vemos é uma projeção da nossa própria imagem constituída no íntimo de nosso próprio pensamento; na arte, o que o artista produz é uma obra capaz de transcender o cotidiano e revelar significados profundos, permitindo que se veja relações ocultas praticamente ilimitadas e pensamentos indesejáveis. Toda obra de arte é perigosa: nela podemos ver refletida nossa imagem que menos gostamos; um regime autoritário 'sabe o que está fazendo' quando limita a liberdade artística: na arte podem refletir-se as piores mazelas do sistema social...
Por isto, arte e mediocridade são termos que se opõem. Gostamos tanto do que ruim porque o que é ruim não revela imagens desagradáveis (algumas intoleráveis) que preferiríramos não enxergar e que a arte, para ser arte, tem o papel de revelar. Arte engajada dificilmente é Arte.
No filme, uma idéia inteligente (o personagem principal, Grenouille, capaz de distinguir todos os odores do mundo sem ser capaz de sentir o próprio cheiro resolve matar diversas mulheres para extrair a sua essência e produzir um perfume tão sublime que é capaz de produzir a fragrância do amor a qual todos se curvam) é contada com tanta superficialidade que as nuances mais profundas que poderia revelar ficam por conta da imaginação do intérprete, o que faz de Perfume um filme insípido.
O problema é que o enredo, aparentemente tão absurdo, não chega sequer a chocar. Daí talvez o sucesso do filme: uma idéia inteligente mal conduzida transformou-se em um filme sem gosto que ajuda o domingo a passar sem que precisemos nos preocupar em entender mais nada.
Isso não é arte, mas apenas um passatempo, mas para passar o tempo (que julgamos tão precioso e queremos tornar mais longevo) melhor seria dedicar algo que realmente alegrasse o domingo: um passeio na praia ou no parque não é uma má idéia. Mas se você está entediado demais até para isso, vá dormir que é melhor do que assistir "Perfume". Quem sabe você não tem um bom sonho?
Na arte e na vida, o que conta, mais do que a história, é como ela é contada, o livro em que se baseio perfume talvez seja bom.
Para se ver como se pode fazer arte de qualquer coisa deixo aqui uma imagem do que um grande artista, Vincent van Gogh, foi capaz de fazer com um simples jarro de flores. Depois dele, os girassóis nunca mais foram os mesmo.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Onde os fracos não tem vez


O último grande vencedor do Oscar (2008) foi "Onde os fracos não tem vez", o nome que foi dado no Brasil para o filme "No country for old man", dos irmão COEN. Depois do filme há uma certeza: Chigurh é um dos personagens mais assustadores que o cinema já criou.
O personagem, Anton Chigurh, representado pelo ator Javier Bardem, não choca pela sofisticação brutal do Canibal, mas pela sua trivialidade e aparente candura. Até o cabelo de Chigurh, 'lambido' como o de um nerd colegial, o torna ainda mais assustador e o próprio título, em português, do filme é muito significativo: no filme não há lugar para os fracos.
Mas Chigurh tem um 'defeito' que o torna excepcional: ele não tem fraquezas. É verdade: Chigur não tem medo, nem sonhos e, o mais importante, ele não tem motivos. Ela mata porque quer matar; ele mata porque pode matar. Daí porque ele deixa a escolha ao acaso e joga cara ou coroa para decidir se vai matar a vítima. Para ele, simplesmente, não faz diferença, pois para Chigur ninguém vale nada mesmo, nem a sua própria vida parecer ter qualquer valor ou sentido.
E esta é a grande força de Chigurh. Ele não perde tempo procurando significados para a vida, ele não pensa o porquê do seu agir: ele age, sem motivo, sem remorso, sem culpa. Chigurh não se arrepende, nem se deprime: ele age. Quase que por instinto
Daí porque o seu código de ética, aparentemente tão rígido, esconde um segredo: Chigurh não se submete a princípios ou regras, o que o torna tão forte, tão determinado, tão decidido.
Em um mundo em que mesmo os aparentemente bem intencionadas (perdidos nos labirintos da sua própria vida) estão mais preocupados em encenar uma falsa bondade para se dar bem, se dá melhor quem não precisa fingir e pode ser tão cruel quanto necessário, sem disfarces ou crises de consciência.
No país do filme, não há lugar para os fracos, nem para os velhos: a pusilanimidade não revela fortaleza moral, mas apenas uma fraqueza de quem não tem coragem de assumir sua maldade e até mesmo as crianças parecem assimilar esta 'dura' lição que o mundo ensina... Mas esta lição, embora reveladora da 'história dos vencedores', nos evoca outro problema fundamental: admitir as próprias fraquezas é uma demonstração de fraqueza?
Em mundo insensível que não é capaz de aceitar, nem de compreender e muito menos de compartilhar a dor do outro não há lugar para os fracos e só resta a cada um o cinismo de fingir uma fortaleza que não tem. Daí porque um psicopata é o único, realmente, forte. Mas será mesmo?
Suspeito que não: admitir a própria fraqueza é a única maneira de se reconhecer. Revelá-las é, paradoxalmente, uma manifestação de fortaleza, de caráter: a consciência das próprias fraquezas é condição para que tenhamos a possibilidade de assumirmos uma humanidade mais humana.
No final, temos muito mais opções do que as escolhas entre o cinismo e a depressão, entre a fragilidade do 'coitidadinho' e a insensibilidade da indeferença. E uma pessoa que não admitir as próprias fraquezas pode até não sofrer uma depressão, perdida no emaranhado de motivos para a existência, mas esta vida não vale ser vivida, pois a vida onde não há lugar para os fracos é uma vida sem sentido, para os fracos e para os fortes.
Sejamos fortes: admitamos, algumas, das próprias fraquezas, o que, de modo algum, significa a justificação e a glorificação do próprio fracasso.
No final, esta é a única escolha ou, então, apenas vai nos restar re-contar, de várias maneiras, a mesma trágica história do filme ou da novela que o inspirou, "No country for old man", de Cormac McCarthy.
Neste mundo, eu preferiria não viver.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O escafandro e a borboleta


A história de "O escafandro e a borboleta", um filme (produção EUA-França, dirigido por Julian Schnabel, estrelado por Mathieu Amalric, 2008) baseado no livro homônimo, é conhecida: o editor da Revista Elle, Jean-Dominique Bauby, em um dia trivial, sofre um AVC (acidente vascular celebral) e se transforma em um prisioneiro dentro do próprio corpo. Detentor da síndrome 'locked in' o 'bon vivant' mantem a plenitude de suas faculdade mentais mas somente controla o movimento de um dos olhos e passa a se comunicar com o mundo com o piscar de olhos (um para sim; dois para não) em que reconhece as letras do alfabeto, ditadas na ordem da freqüência de sua utilização, passando a formular palavras e orações neste lento processo.

Prisioneiro em seu escafandro, Bauby preserva integralmente suas faculdades mentais e aguça sua percepção para revelar uma verdade muito dolorosa: de algum modo, como Bauby, também estamos presos em escafandros.

Bauby somente se conhece e revela inteiramente sua personalidade quando quase não tem mais condições de se exprimir; castrado pela doença, percebe, com acuidade, nuances e matizes que não imaginava que a vida pudesse ter tão plenas.

Na agitada vida de editor da Revista Francesa, Bauby era insensível para tudo que mais poderia ter sentido para ele mesmo: distraído entre um desvio (um carro novo, por exemplo) e outro (uma nova amante) mal conseguia manter um interesse sincero por qualquer coisa.

No sofrimento intenso, passa a distinguir o que realmente importava para descobrir que simplesmente deixou a vida passar, sem ter mais como aproveitá-la integralmente.

A maior angústia do editor de Elle não foi sofrer um acidente que o deixou em um estado físico quase 'vegetativo': a maior angústia foi, depois da doença, passar a compreender a verdadeira dimensão da própria vida. Bauby descobriu, na doença, a razão e o significado para cada dia sem poder mais dispor do dia.

Restou, apenas, a lembrança melancólica de não ter assumido sua vida plenamente enquanto podia ser qualquer coisa. Bauby desperdiçou a vida ao preocupar-se com o que não devia e ocupar-se com o que não lhe importava; perceber o que lhe era caro não o salvou por não poder mais aproveitar a inteireza de cada coisa. Bauby perde o momento: quando descobriu um sentido para a vida era tarde demais.

Mas não serão estas as nossas maiores angústias também?

Temo que seja a minha...

Ainda há tempo para construir os sentidos, mas o que pode nos impedir?

terça-feira, 8 de julho de 2008

Em busca do tempo perdido

"Em busca do tempo perdido" é o grande clássico de Marcel Proust, um dos grandes romances do século XX.
É, de fato, um grande romance: a começar pela impressionante extensão, que obrigou o autor a publicá-lo em vários volumes como livros 'autônomos'. Dizem que Guimarães Rosa, em seus tempos de Diplomata, sumiu por uns dias e, encontrado depois, disse que havia se isolado para ler "Em busca do tempo perdido". Carlos Drumond de Andrade e Mário Quintana gostaram tanto do livro que se tornaram os tradutores de uma de suas edições brasileiras.

Mas o que faz um autor dedicar vários anos da sua vida para escrever um livro tão extenso?

Certamente, o que conduz tantos leitores qualificados a dedicar inúmeras horas para lê-lo: o livro revelta tanto sobre o universo vivido por Marcel Proust quanto sobre o universo vivido por cada um de nós.

"Em busca do tempo perdido", não fala de mim, nem de você, mas fala, o tempo todo, para cada um de nós e revela, nos personagens (como em Swann ou Odette, por exemplo), tantas idéias e tantos mundos em um mundo só que ficamos completamente atormentados, arrebatados pela delicadeza do autor e pelo universo que cria.

É neste universo, ao mesmo tempo tão sútil e tão denso, que no quotidiano se revela a gradiosidade oculta da vida, até mesmo na existência mais frívola e nos instantes mais irrelevantes e casuais surge o significado mais pleno, como no clássico episódio da madeleine do livro, o bolhinho francês que ao ser saboreado na vida adulta pelo personagem permite que se revele, intacto, o gosto de um passado perdido que não volta mais, mas ainda existe, pois só assim é possível que seja revivida a expriência em toda sua inteireza, ainda que por um átimo e sem que sejamos capazes de escolhar a hora. Na obra, como navida, nada volta e, ao mesmo tempo, tudo está sempre voltando.

Todo tempo na vida é, de algum modo, sempre um tempo ganho e um tempo perdido e a teia tão complexa de relações que permeiam todo instante é quem dá significado à vida: queiramos, gostemos, tenhamos consciência ou não...

Toda vida, por mais frívola, é também vida, com tantos significados possíveis e imagináveis que até os mais vazios personagens do fim da era vitoriana acabam revelando uma humanidade tocante. Proust denuncia a vida materialista da burguesia do início do século XX, mas acaba demonstrando que até a vida vivida da maneira mais mesquinha é capaz de emocionar e tocar.

No atual mundo, ainda mais dispersivo e materialista, recorrer à Proust é relembrar os sentimentos e percepções que tentamos calar mas que existem e falam tanto sobre nós quanto nossas vozes eloqüentes e nossas falsas aparências mal disfarçadas.

Ler Proust é reler, através do seu mundo, o nosso mundo, ampliando os nossos horizontes, a nossa percepção e a nossa sensibilidade. Ao final de qualquer dos volumes, a impressão que se tem é que lê-los pode até ser difícil e doloroso, mas nunca um tempo perdido.

"Em busca do tempo perdido" é um livro para se ler, reler, e ler de novo, com a certeza de que nossa vida termina sendo iluminada e, em cada vez, se pode fazer uma nova resenha, um novo comentário e se desenvolveram novos pensamentos, novas e multiplas faces para a vida e para o livro.

Para que perder tempo, então? Vamos "Em busca do tempo perdido."

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O fantasma sai de cena: Philip Roth e o fim do romance

Nur mit Wind, mit Zeit und mit Klang, Kiefer, Anselm, Guggenheim, Bilbao

O alter ego do escritor americano Philip Roth, Natan Zuckermann, está de volta em o “Fantasma saí de cena” (companhia das letras): de volta e em plena forma.
Depois de 11 (onze) anos isolado, escrevendo com a disciplina e a imaginação de um grande escritor, Natan retorna a Nova York na época da reeleição de George W. Bush e o que o choca (guessa what) é a invasão de celulares por todos os lugares.

A grande maçã (Big Apple), capital que enche alma de esperança e ambição, não é mais a cidade de Natan, que, em sua maturidade, continua um homem atormentado, de um conformismo pessimista, pela doença e pela amargura. Isolado, Zuckermann vivia no incômodo conforto da sua imaginação nas montanhas da Nova Inglaterra.

De volta à cidade, confronta-se com um mundo dinâmico demais para ser compreendido ou aceito pelo escritor idoso; a juventude é a grande inimiga que o encanta e o intimida, como o fazem a herdeira rica e sedutora escritora quase histérica e frustrada e o candidato à biógrafo do mentor intelectual de Natan.

Qual o papel do romance neste universo tão rápido e dispersivo?

Um universo nutrido pelo interesse por fatos e histórias ‘reais’, mesmo que não passem de farsa, em que a literatura passa a ser identificada com a biografia...

Roth não responde: mas demonstra que o romance, enquanto gênero, continua em plena atividade. Neste mundo de dispersões, nem mesmo a relação quase fetichista com 'o real' é capaz de impedir o retorno do fantasma da imaginação de todos que lutam para manter sua própria identidade .

Neste novo mundo, ZucKerman, o vetusto, pode até pertencer ao velho mundo, ao outro mundo, à outra época, que habita o mundo atual como um fantasma: mas um fantasma em plena forma e em cena.

Se hoje, a vida se tornou quase uma permanente representação, pois afinal estamos todos em cena, a ficção (e a literatura, portanto) é um elemento formador e transformador deste mundo para que a vida não se torne uma farsa.

A recusa de Zuckerman em colaborar com a biografia de seu menor é uma recusa em aceitar este 'choque do real', este mundo pouco imaginativo e paradoxal: a recusa em buscar o irreal (o imaginativo, o transcedente) deriva da excessiva irrealidade do real.


Resta, porém, um alento final: enquanto houver Vida, os fantasmas vão dominar a cena. Bem vindos, ao universo e ao fantasma de Philip Roth.

Viva os fantasmas.