segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Rio das Flores


'Rio das Flores" (Cia. das Letras) de Miguel de Sousa Tavares é um dos romances do momento em Portugal. O jornalista, que se tornou um "best seller" com "Equador", escreve um romance histórico, fiel à sua profissão de jornalista.

O livro tem o ritmo de uma reportagem ao contar a história dos irmãos Pedro e Diogo, cujos laços familiares e culturais conduzem a personalidades distintanes e antagônicas durante o início do século XX e seus dramáticos eventos.
Diogo é um herdeiro rico liberal e democrata que deseja a todo custo liberdade para si e para o seu país; Pedro é um latifundiário reacionário que se mantém fiel por toda à vida as suas tradições alentejanas.

Apesar do ritmo e da doçura da história falta um pouco mais de imaginação ao romance em que se cria personagens esquemáticos e simples demais, até mesmo em suas contradições, apesar de sedutores. A obsessão com a precisão histórica, inclusive com referências bibliográficas no fim do livro, é desnecessária (quem quiser ler história que procure livros de história!) e falta espaço para a fantasia e para a liberdade (criativa) tão reivindicada por Diogo: um herói previsível demais que possuí desde o início a simpatia do autor; até a sua coragem para ser livre é mais do que esperada é quase uma imposição.

O livro, pela sua leveza, acaba tornando-se cativante e só resta ao autor e a nós seguir o conselho poético de Diogo: eu temo que uma vez livre a liberdade, que antes era uma saudade, torne-se em um vício.

Espero que consigamos transformar a liberdade em um hábito.

Em 2009, cultivemos o saudável hábito de sermos livres.

O conto do Amor


Quem quiser passar o tempo com uma boa história de amor deve ler "o Conto do Amor" (Companhia das Letras), de Contardo Calligaris, psicanalista e colunista da Folha de São Paulo, que escreve às quintas-feiras textos bastante interessantes.

Após a morte do pai, um jovem italiano procura reconciliar-se com o passado e vai até a Itália para investigar a grande paixão de seu pai pela arte renascentista( especialmente pelo pintor maneirista Sodoma), que esconde uma outra paixão ainda maior.

A ida à Itália para descobrir a história do pai é muito mais um pretexto para que o personagem principal re-construa a sua própria história, o que acaba acontecendo. Ver o passado como o universo que nos permite construir melhor o próprio futuro a partir do presente é uma idéia revigorante e o livro é leve, divertido e curto. Ele bem vale uma tarde de fim de ano: o mais importante, porém, é que cada um de nós seja capaz de fazer o próprio "Conto do amor". Se ele virar um romance tanto melhor.

Vicky Cristina Barcelona


"Vicky Cristina Barcelona" é mais um filme de Woody Allen que vale a pena ser visto. As amigas Vicky e Cristina saem de Nova York para a encantadora Barcelona para férias de dois meses para procurar a felicidade e, quem sabe, até se encontrar.

A infiel anfitriã catalã que hospeda Vicky e Cristina com uma vida aparentemente organizada é a antípoda do desejo das jovens americanas. Vicky prefere uma vida com conforto e segurança em em que os riscos possam ser sempre calculados; Cristina não teme em se lançar na primeira aventura, ainda que seja para continuar sozinha e cheia de dúvidas.

O ator Jaiver Bardem mostra mais uma vez sua versatilidade e quase nos faz esquecer Chigur (de "Onde os Fracos não tem vez") ao representar o boêmio artista que é o catalizador dos sonhos das mulheres ao mesmo tempo em que não passa de um coadjuvante.

Cristina (a grande musa da atualidade, Scarlett Johanssen) encanta-se imediatamente pelo livre e envolvente artista espanhol; Vicky encanta-se ainda mais embora com enorme relutância em uma amor que vai abalar completamente uma vida aparentemente inabalável. Maria, representada por Penélope Cruz, é a imagem mais poderosa do filme embora com tanta intensidade acabe resultando em um irremediável desequilíbrio que resulta no delírio, na violência e na loucura.

No final, todos os personganes saem da história transformados neste curto período de dois meses de férias. Nós, em apenas duas horas, podemos até não sair transformados mas poderemos sair pelo menos diferentes a pensar no real significado desta grande aventura, a vida.

E talvez termine em uma reflexão sobre qual é o seu personagem preferido: Vicky, Cristina ou Maria? Eu estou tentando aprender a ser eu mesmo. Se a dúvida for grande demais, umas férias em Barcelona são altamente recomendadas; se não houver dúvidas, também!

Gomorra


Gomorra, dirigido por Matteo Garrone, é a versão cinematográfica do livro do Jornalista Roberto Saviano, que conta um pouco da história atual da máfia Napolitana, a Comorra. Tráfico de drogas, falsificação de artigos de luxo, armazenamento ilegal de lixo tóxico são algumas das atividades da Comorra e participar deste lucrativo negócio torna-se a principal alternativa para os `cidadãos` das cidades do sul da Itália dominadas pelo crime organizado. Bem, nem tão organizado, mais ainda assim assustador pela capilaridade e pela trivialidade da violência que o coloca no cotidiano das pessoas comuns: um dos méritos do filme é transmitir para nós a sensação de que naquele meio não há alternativa além do crime e no seu tom quase documental ele quase consegue nos convencer.

O filme é uma versão Italiana do nosso "Cidade de Deus", de Fernando Meireles, sem o mesmo ritmo, intercalando várias histórias e sem nenhuma polaridade: a dificuldade de identificar os grupos rivais parece ser proposital: todos os grupos são rivais da civilização.

É curioso que no berço da civilização, no sul da Itália onde começou a se desenvolver a arte e a filosofia na Magna Grécia, que fez parte do impértio romano, hoje tenha sobrado o sub-produto mais perverso do capitalismo: a violência com armas poderosas, o comércio de drogas, do luxo e do lixo (tóxico).

O filme chocou os europeus e está sendo considerado um dos filmes do ano em toda Europa: para nós não é tão chocante, mas serve pelo menos para um reflexão: ele nós mostra, sem qualquer subterfúgio, para onde vai o dinheiro daquele bolsa Louis Vuiton falsificada.

Então, você pode escolher entre assitir o filme ou correr para comprar mais um produto falsifcado e dar a sua contribuição para a máfia italiana ou chinesa. Eles fazem qualquer negócio. E você?

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Entre nós


Em "Entre nós, um escritor e seus colegas falam de trabalho" Philip Roth compartilha com outros escritores (em conversas com Primo Levi, Aharon Appelfeld, Ivan Klíma, Issac Singer, Bruno Schultz, Milan Kundera, Edna O'Brien, em correspondência com Mary McCarthy e em resenhas de Saul Bellow, com referência ainda a Malamud e Guston) alguns segredos de profissão.

No livro, na maior parte entrevistas com escritores judeus e sobreviventos do holocausto ou da perguição autoritária, Philip Roth discute alguns segredos da difícil arte de escrever romances: alguns precisam manter-se na pátria, outros precisam fugir para bem longe; alguns precisam do labor diário, como Levi que continuou trabalhando na indústria química, outros precisam de dedicação exclusiva à arte de contar histórias.

Todos, porém, têm algo em comum: são consumidos pelo desejo ardente de criar grandes histórias.

Ser escritor não é um simples desejo entre outros desejos; é quase uma missão, uma obrigação do artista consigo mesmo. O escritor pode até deixar de contar as suas histórias mas elas irão perseguí-lo implacavelmente em qualquer lugar por toda vida.

Mas para contar uma história o artista precisa mergulhar profundamente na sua própria história, no imenso labirinto dos motivos do viver e do passado que nos constitui. A própria vida pode tornar-se um risco como reconhece MILAN KUNDERA "Há uma linha divisória imaginária além da qual as coisas parecem desprovidas de sentido, ridículas. A pessoa perguna para si própria: não é um absurdo que me levante de manhã para ir ao trabalho? Lutar pelo que quer que seja? Fazer parte de uma nação só porque eu nasci nela? O homem vive muito próximo dessa fronteira, e por isso não é difícil para ele passar para o outro lado."

Um escritor pode muitas vezes mergulhar tão profundamente até o ponto em que não veja mais causa para nada, eventualmente nem para a própria vida, mas ele deve retornar para contar a sua história e revelar uma pequena parte dos mistérios que conhece que são também os mistérios da vida.

Ainda assim a história vale muito mais pelos mistérios que não revela e pelas perguntas que faz: "A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo, esse mundo se transoformou em um mistério diante de seus olhos" (KUNDERA).

Ao escritor só resta, portanto, mergulhar nos mistérios da vida ,no próprio sofrimento e até na carência de motivos para a vida para poder contar a própria história, nem que seja para depois mergulhar de novo. E este parece ser "o preço que se paga por ser escritor. A gente vive atormentado pelo passado - dores, sensações, rejeição e por aí vaí (O'Brien). Mas será que os que não são escritores não pagam o mesmo preço, embora se esforçando para esconder toda sujeita em baixo do tapete?

A arte, e a literatura não é exceção, só se faz por pessoas que tenham alguma "perspectiva de escapar de uma rotina embrutecedora e desgastante" (KLÍMA); no final, a própria arte vai de encontro à vida embrutecedora para encontrar uma outra vida, mais humana, em que o sofrimento e o regojizo tenham um pouco mais de humanidade.

Escrever é dar uma nova ordem ao caos da vida, ainda que o faça de um modo também caótico desde que submetido ao gênio do criador pois, como diz APPELFELD, "criar significa ordenar, classificar, e escolher as palavras e o ritmo que servem à obra".

E se o poeta conseguir entrar no mais profundo contato consigo mesmo ele pode revelar o sagrado, pois "o criador que sabe refletir suas experiências mais íntimas de modo profundo e verdadeiro acaba atingindo também as esferas suprapessoas ou sociais" (KLÍMA), como fez o tímido KAFKA.

O que o escritor faz é "tirar alguma coisa do nada, e isso envolve uma ansiedade extrema. Quando Flaubert diz que em seu escritório impricações e grito de angústia ele poderia estar descrevendo o escritório de quaquer escritor" (EDNA O'BRIEN).

É evidente que qualquer um pode escolher ficar longe desta vida de angústia e não perder tempo sequer para ler um "supérfluo" romance mas uma vida sem romances é uma vida vazia e sem graça, intolerável.

E até mesmo o escritor pode decidir não escrever os seus romances; mas eles vão ficar gritando, dilacerando o autor até que se torne intolerável a dor do não criar: para um escritor se os personagens não criarem vida própria é a própria vida quem vai perder todo sentido .

Para um artista contar sua arte não é uma parte da vida: é a própria vida; no final, não é o artista quem escolhe a arte é a arte quem o escolhe.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Wright cantou o sagrado


Se nosso papel é revelar o sagrado do mundo, Frank Lloyd Wright soube ver o sagrado. Nascido em uma família culta Wright aprendeu a cultivar a arte e fez da arte sua vida. Como garoto nascido no interior, criado na zona rural, Wright adotou um princípio simples para a sua arquitetura: a arquitetura orgânica, uma arquitetura enraizada na natureza ocupada apenas em garantir que a obra fosse apropriada ao tempo, ao lugar e ao homem.

O arquiteto deve apenas enxergar a natureza e tentar, na arte da arquitetura, reproduzí-la; quando não for possível deve-se tentar fazer uma obra tão natural e harmônica com a natureza como se a própria natureza a tivesse produzido.

Quem já foi ao Gugenheim de Nova York entende o que Wrigth quer dizer quando se refere a uma arquitetura que sirva ao homem e se integre ao lugar e ao seu tempo, mas é na casa encrustrada na cachoeira (Fallingwater) que vemos o vigor e a plenitude de sua imaginação e de sua arte. Aqui, Frank Lloyd Wright cantou o sagrado: http://www.fallingwater.org/explore?to=1

Vendo a casa do Sr. Kaufmann, o nome Right parece pouco e dá vontade de dizer Frank Lloyd Perfect. Quem quiser saber mais, não deixe de ler: Frank Lloyd Wright, The Masterworks, editora Rizzoli.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

No tempo da noite do mundo o poeta canta o sagrado


Imagine que um Deus te visitasse no meio da noite e anunciassem que tua morte se daria daqui a quatro ano: o que você faria? Imagine que este mesmo Deus te oferecessse mais quatro anos de vida de acordo com o teu empenho nos quatro anos anteriores: você mereceria a prorrogação?

Nietzsche formulou, de outro modo, questão semelhante e imaginou o que aconteceria se um demônio nos visitasse no meio da noite, na hora da mais profunda solidão, e anunciasse que cada instante da nossa vida repetiria-se-ia nos exatos termos por toda eternidade: você continuaria com a mesma vida?

O que você faria se fosse se submeter, de verdade, a estes testes psicológicos e filosóficos: correria para o primeiro bar para encher a cara? Liberaria todo censura e viveria como uma besta fera a comer, beber, comprar, usar, tudo que pudesse?

Pois é, é o que fazemos a cada instante. Vivemos um tempo estranho, estranho e cheio de paradoxos: sonhamos com uma vida longa mas não cansamos de reclamar das horas que passam lentas demais para, então, lamentar que o ano ou a vida foi rápida demais.

Comemos demais embora estejamos quase sempre sem fome; compramos demais tudo o que não precisamos; falamos demais embora tenhamos muito pouco a dizer. Usamos tudo embora as coisas não signifiquem grande coisa para a gente.

Suspeito que exista uma causa para esta paradoxo e para a insatisfação permanente do homem moderno: suspeito que estejamos procurando a vida no lugar errado. Martin Heidegger compartilha da mesma suspeita e diz que vivemos na era da tecnologia, em que a técnica, na sua capacidade de apropriação das coisas, substituiu o homem.

Procuramos nos objetos (na comida, nas compras, no palavriado inautêntico) substitutos para o vazio de nossa existência e o resultado parece inevitável: vamos continuar procurando, inutilmente.

Mas onde se encontra o significado, então? Heidegger não quer nos revelar diretamente mas Nietzsche, o autor do nosso segundo teste psicológico, não teme em anunciar: o que é grande no homem é que ele é um passar e um sucumbir!

O homem é uma corda atada, entre o animal e o além do homem. Uma corda sobre um abismo. Perigoso travessia, perigoso a caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar.
O que é grande no homem, é que ele é uma ponte e não um fim: o que pode ser amado no homem, é que é um passar e um sucumbir.

Assim falou Zaratustra, que quer nos anunciar que o homem é uma passagem (uma corda) entre o que era (o animal) e o que pode vir a ser (o além do homem). O homem é uma passagem (uma corda) sobre uma abismo (a vida), que a todo instante desafio o homem e só temos uma escolha verdadeira: sucumbir, entregar-se inteiramente à vida como homens que passam e sucumbem.

Mas como podemos nos assumir e sucumbir? Heidegger sabe a resposta: não podemos fugir da morte e agir com medo dela, procurando nas coisas substitutos para tudo que não somos. Precisamos, então, assumir definitivamente a angústia da vida produzida pela possibilidade sempre presente do nada da morte. Diante da emergência da morte só nos restaria procurar o significado mais profundo do Ser oculto em nós: comendo sempre com o gosto da última ceia.

É bastante sugestivo que nos EUA reserve-se para os presos condenados à morte o direito de escolher a última ceia: até os piores criminosos, condenados à eliminação, merecem experimentar o último instante de prazer sublime da vida embora, para muitos de nós, possa parecer que não adiante de mais nada pois a pessoa já vai morrer mesmo? E nós não vamos morrer também não, Cara Pálida? E o que adianta, então?

E para que servem as coisas? O homem não é o servo das coisas: das compras, das informações, da comida; as coisas é que devem servir ao homem. Mas para que serve o homem?

O homem não serve para nada: serve só para Ser ele mesmo, para dizer o sagrado da vida em um tempo sempre tão difícil que é o agora ou, como anuncia Hölderin, o poeta do eterno: No tempo da noite do mundo o poeta canta o sagrado.

Nos próximos quatro anos, pretendo tentar cantar o sagrado. Quem sabe não consigo merecer mais quatro anos... E você o que você pretende fazer com os teus quatro anos?


P. S.: Se você não entendeu este texto, visite a exposição Noite estrelada de Van Gogh, lá você vai ver o que estou querendo dizer: http://www.moma.org/exhibitions/exhibitions.php?id=5634