segunda-feira, 20 de julho de 2009

A teoria dos princípios de Dworkin

A teoria dos princípios de Dworkin: o direito como integridade

DWORKIN constrói uma teoria do direito (fundada em princípios) que se propõe a garantir a segurança jurídica e a correção do direito. A sua teoria pode ser entendida como:

“uma tentativa de evitar as falhas das propostas de solução realistas, positivistas e hermenêuticas, bem como de esclarecer, através da adoção de direitos concebidos deontologicamente, como a prática de decisão judicial pode satisfazer simultaneamente às exigências da segurança do direito e da aceitabilidade racional. Contra o realismo, Dworkin sustenta a possibilidade e a necessidade de decisões consistentes ligadas a regras, as quais garantem uma medida suficiente de garantia do direito. Contra o positivismo, ele afirma a possibilidade e a necessidade de decisões ‘corretas’, cujo conteúdo é legitimado à luz de princípios (e não apenas formalmente através de procedimentos). No entanto, a referência hermenêutica a uma pré-compreensão determinada por princípios não deve entregar o juiz à história de tradições autoritárias com conteúdo normativo; ao contrário, esse recurso obriga-o a uma apropriação crítica de uma história institucional do direito, na qual a razão prática deixou seus vestígios; Dworkin tem em mente os direitos que gozam de validade positiva e merecem reconhecimento sob o ponto de vistas da justiça.”[4]

DWORKIN destaca-se como um dos mais importantes defensores da teoria dos princípios, mas a sua adequada compreensão somente pode ser realizada no contexto mais amplo da sua teoria do direito como integridade, na qual os princípios exercem um papel indispensável, especialmente na solução dos casos difíceis.

Na sua teoria do direito, DWORKIN propõe uma nova compreensão do direito fundada em distintos tipos de normas jurídicas (regras e princípios) para solucionar estes casos difíceis para os quais o positivismo não consegue encontrar uma resposta adequada.[5]

Os princípios diferenciam-se das regras e dividem-se em diretrizes políticas (policies) e princípios em sentido estrito (principle). DWORKIN classifica, pois, as normas jurídicas em: 1) princípios no sentido genérico, que se dividem em: 1.1) princípios em sentido estrito, entendidos como “uma diretriz que deve ser implementada e respeitada não porque vá garantir ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas por ser uma exigência da justiça ou da eqüidade ou de alguma outra dimensão moral”[6]; 1.2) diretrizes políticas, que seriam “aqueles tipo de diretriz que estabelece objetivos para serem alcançados pela comunidade, geralmente uma melhoria em alguma área econômica, política ou social da comunidade (apesar de alguns objetivos serem negativos na medida em que eles estipulam que determinadas conquistas precisam ser protegidas de mudanças adversas.”[7] ; 2) regras, que são normas sobre as quais “não podemos falar que uma é mais importante do que a outra no sistema de regras, de modo que quando duas regras conflitam, uma delas não pode ser válida.”[8]

Aos diferentes tipos de normas, aplicam-se modos diversos de resolução de conflitos, que irá mudar de acordo com o tipo de norma: 1) o conflito entre as regras resolve-se à maneira do tudo ou nada (all or nothing), em que a solução da controvérsia exige a invalidade de uma das regras conflitantes ou a incidência de uma cláusula de exceção para uma delas; 2) já o conflito entre princípios em sentido estrito resolve-se na dimensão do peso (não da validade), que é aferido a partir de uma leitura moral da Constituição orientada em princípios pelo juiz Hércules para que ser tomada a melhor decisão possível para aplicação do direito ao caso concreto; 3) já os problemas relacionados às diretrizes políticas resolvem-se fora do poder judiciário pelo poderes que atuam no campo estritamente político.

A figura do juiz Hércules, criada por DWORKIN,[9] simboliza as qualidades excepcionais de que deve ser dotado o juiz para reconstruir, com coerência, o direito vigente, em cada caso, para que seja tomada melhor decisão possível amparada na leitura moral dos princípios,[10] pois “uma decisão jurídica de um caso particular só é correta, quando se encaixa num sistema jurídico coerente.”[11]

Para garantir a correção do direito, uma reconstrução racional e coerente do direito vigente, fundada em uma leitura moral dos direitos individuais, é apresentada. Esta reconstrução parte de uma proposta liberal do direito, fundada numa leitura moral dos princípios liberais, em que os direitos devem ser entendidos como limites ao poder do Estado.[12]

Neste contexto, o princípio da integridade precisa ser reconhecido por todos os membros da comunidade do direito, que se reconhecem, reciprocamente, como dignos de igual respeito e consideração.

Hércules deve, então, reavaliar, com base em uma leitura moral dos direitos individuais, fundada no tratamento de todos com igual respeito e consideração, todos os precedentes judiciais para fazer a melhor interpretação do direito vigente.

Na reconstrução do direito em cada caso com base nos precedentes, o juiz deve decidir os casos novos de modo que sejam coerentes com todas as decisões anteriores. O procedimento adotado pelo juiz assemelha-se, na elegante metáfora de DWORKIN, ao procedimento adotado por um escritor de um romance em cadeia, que elabora cada novo capítulo do livro de modo harmônico com os capítulos anteriores.

A metáfora do romance em cadeia é útil por denotar a exigência de que cada decisão judicial integre-se de modo harmônico ao sistema de direitos. A coerência é a chave da compreensão do direito como integridade por harmonizar passado, presente e futuro. [13]

O olhar retrospectivo do juiz, contudo, não pode impedi-lo de abandonar, a qualquer tempo, os precedentes, que se revelarem inadequados para resolver a situação presente, pois o olhar do juiz deve ser voltado para apresentar hoje a melhor decisão, orientada em princípio, mas com os olhos para o futuro:

“O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo a afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é lei’, bem como o cinismo do novo ‘realismo’. Considera esses dois pontos de vistas como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer.”[14]

Deste modo, a história e os precedentes são reconstruídos pelo intérprete para que a próxima decisão seja coerente com a tradição que a antecede. O intérprete, contudo, pode inovar e até mesmo construir uma nova interpretação, ainda que radicalmente nova, desde que coerente com a história que o precede, para adequar a situação a uma nova compreensão da realidade social amparada em uma nova leitura moral dos princípios constitucionais em que se deve buscar a melhor decisão para o caso concreto.

Neste contexto, a teoria da integridade rompe definitivamente com o ceticismo e o relativismo do positivismo ao admitir que há somente uma decisão correta para cada caso. E esta única decisão correta decorre da melhor leitura moral dos princípios para o caso concreto.

A interpretação judicial não é uma questão de preferência, pois não existe para o intérprete a opção de respeitar os princípios, nem mesmo a opção de respeitá-lo em maior ou menor medida. Os princípios são normas e, logo, constituem-se em mandamentos (proibições, permissões e determinações) de observância obrigatória pelo intérprete na aplicação de cada caso.

A teoria dos princípios de DWORKIN, que HABERMAS utiliza, adaptando-a a teoria do discurso, contrapõe-se a teoria dos princípios de ALEXY, que será analisada a partir de agora.



[1] A expressão teoria dos princípios é empregada, inclusive para o direito brasileiro, por BONAVIDES (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 265). Sobre o tema merece registro a obra de EROS GRAU que foi uma das primeiras a tratar da distinção entre regras e princípios na teoria do direito e no direito constitucional: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 73-120.

[2] BONAVIDES , Paulo, Curso de Direito Constitucional, p. 420: “Não vamos tão longe aqui a ponto de postular uma técnica interpretativa especial para as leis constitucionais, nem preconizar os meios e regras de interpretação que não sejam aquelas válidas para todos os ramos do Direito, cuja unidade básica não podemos ignorar nem perder de vista (doutra forma não se justificaria o longo exórdio que consagramos à teoria da interpretação e seus distintos métodos), mas nem por isso devemos admitir se possa dar à norma constitucional, salvo violentando-lhe o sentido e a natureza, uma interpretação de todo mecânica e silogística, indiferente à plasticidade que lhe é inerente, e a única aliás a permitir acomodá-la a fins, cujo teor axiológico assenta nos princípios com que a ideologia tutela o próprio ordenamento jurídico.”

[3] BONAVIDES , Paulo, Curso de Direito Constitucional, p. 231-238.

[4] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Volume 1, p. 252.

[5] DWORKIN entende que o positivismo parte de uma compreensão do direito como um sistema de regras jurídicas em que não há espaço para os princípios ou para policies: “Quando os positivistas analisam os princípios e as políticas, eles os tratam como regras manque. Eles assumem que se eles são padrões jurídicos devem ser regras, e então eles os compreendem como diretrizes que estão tentando ser regras.” No original: “There is another, more subtles consequence of this initial assumption that law is a system of law. When the positivists do attend to principles and policies, they treat them as rules manqué. They assume that if they are standards of law they must be rules, and so they read theam as standards that are trying to be rules.” (DWORKIN, Ronald. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald (ed.). The Philosophy of Law, p. 59-60).

[6] No original: “I call a ‘principle’ a standard that is to be oberved, not because it will advance or secure na economic, political or social situation deemed desirable, but because it is a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality.” (DWORKIN, Ronald. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald (ed.). The Philosophy of Law, p. 43).

[7] No original: “I call a ‘policy’ that kind of standard that sets out a goal to be reached, generally an improvement in some economia, political or social feature of the community (though some goals are negative, in that they stipulate that some present feature is to be protected from adverse change).” (DWORKIN, Ronald. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald (ed.). The Philosophy of Law, p. 43).

[8] No original: “we cannot say that one rule is more important role in regulating behaviour. But we cannot say that one rule is more important than another wihtin the system of rules, so that when two rules conflict, one of them cannot be a valid rule.” (DWORKIN, Ronald. Is Law a System of Rules? In: DWORKIN, Ronald (ed.). The Philosophy of Law, p. 48).

[9] O juiz Hércules é uma metáfora utilizada por DWORKIN para demonstrar as qualidades excepcionais, quase divinas, do juiz que toma a melhor decisão em cada caso, respeitando o princípio da integridade e garantindo a coerência do direito. Para uma melhor compreensão de Hércules ver: DWORKIN, Ronald. O império do Direito, p. 377-492.

[10] DWORKIN refuta as críticas à incerteza de uma leitura moral da Constituição amparada em princípios. Segundo Dworkin, embora a leitura moral aplique-se à minoria dos casos, não significa que nos casos difíceis os juízes devam abdicar da segurança jurídica. A leitura moral é jurídica e por ser jurídica é ancorada na história, na prática e na integridade: “I emphasize these constraits of history and integrity, because they show how exaggerated is the common complaint that the moral reading gives judgens absolute power to impose their own moral convictions on the rest of us. Macauley was wrong when he said that the Americna Constitutional is all sail and no anchor, and so are the other critics who say that the moral reading turns judgens into philosopher-kings. Our constitutiona is law, and like all law it is anchored in history, practice, and integrity. Most cases at law - even most constitutional cases cases – are not hard cases. The ordinary craft of a judge dictates an answer and leaves no room for the play of personal moral conviction.” ( DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: the moral reading of the american constitution, p. 11.) HABERMAS faz uma leitura diferente da teoria do DWORKIN, contrária ao que afirma o próprio jurista Anglo-saxão, e entende que os casos, quase sempre, são difíceis: “Quando se parte do princípio de que, nos casos típicos para a jurisdição atual, não entram em jogo apenas regras específicas de aplicação, mas também princípios, é fácil mostrar por que existem uma grande possibilidade de colisões – não havendo, mesmo assim, uma incoerência profunda no sistema jurídico. Todas as normas vigentes são naturalmente indeterminadas, inclusive aquelas cujo componente ‘se’explicita a tal ponto as condições de aplicação, que elas somente podem encontrar aplicação em poucos situações típicas padronizadas e muito bem descritas (e podem encontrar aplicação sem dificuldades hermenêuticas). Constituem naturalmente exceções as normas que Dworkin caracteriza como ‘regras’e que, em casos de colisão, exigem uma decisão em termo de tudo ou nada” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Volume 1, p. 289)

[11] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Volume 1, p. 289

[12] DWORKIN sustenta um conceito liberal do direito e dos princípios: “The clauses of the American Constitution that protect individuals and minorities from government are found mainly in the so-called Bill of Rights – the first several amendments to the document – and the furthes amendments added after the Civil War (…) Many of these clauses are drafted in exceedingly abstract moral language. The first Amendment refers to the ‘right’ of free speech, for example, the Fifth Amendment to the process that is ‘due’ to citizens, and the Fourteenth to protection that is ‘equal’. According to the moral reading, these caluses must be undestood in the way their language most naturally suggests: they refer to abstract moral principles and incorporate these by reference, as limits on government’s power.” (DWORKIN, Ronaldo. Freedom’s Law: the moral reading of the american constitution, p. 6)

[13] HABERMAS explica o sentido de coerência em DWORKIN: “Coerência é uma medida para a validade de uma declaração, a qual é mais fraca que a verdade analítica, obtida através da dedução lógica, porém mais forte do que o critério da não-contradição. A coerência entre enunciados é produzidas através de argumentos substanciais (no sentido de Toulmin), portanto através de argumentos que revelam a qualidade programática de produzir um acordo racionalmente motivado entre participante da argumentação.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Volume 1, p. 289)

[14] DWORKIN, Ronald. O império do Direito, p. 274.

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