terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Entre nós


Em "Entre nós, um escritor e seus colegas falam de trabalho" Philip Roth compartilha com outros escritores (em conversas com Primo Levi, Aharon Appelfeld, Ivan Klíma, Issac Singer, Bruno Schultz, Milan Kundera, Edna O'Brien, em correspondência com Mary McCarthy e em resenhas de Saul Bellow, com referência ainda a Malamud e Guston) alguns segredos de profissão.

No livro, na maior parte entrevistas com escritores judeus e sobreviventos do holocausto ou da perguição autoritária, Philip Roth discute alguns segredos da difícil arte de escrever romances: alguns precisam manter-se na pátria, outros precisam fugir para bem longe; alguns precisam do labor diário, como Levi que continuou trabalhando na indústria química, outros precisam de dedicação exclusiva à arte de contar histórias.

Todos, porém, têm algo em comum: são consumidos pelo desejo ardente de criar grandes histórias.

Ser escritor não é um simples desejo entre outros desejos; é quase uma missão, uma obrigação do artista consigo mesmo. O escritor pode até deixar de contar as suas histórias mas elas irão perseguí-lo implacavelmente em qualquer lugar por toda vida.

Mas para contar uma história o artista precisa mergulhar profundamente na sua própria história, no imenso labirinto dos motivos do viver e do passado que nos constitui. A própria vida pode tornar-se um risco como reconhece MILAN KUNDERA "Há uma linha divisória imaginária além da qual as coisas parecem desprovidas de sentido, ridículas. A pessoa perguna para si própria: não é um absurdo que me levante de manhã para ir ao trabalho? Lutar pelo que quer que seja? Fazer parte de uma nação só porque eu nasci nela? O homem vive muito próximo dessa fronteira, e por isso não é difícil para ele passar para o outro lado."

Um escritor pode muitas vezes mergulhar tão profundamente até o ponto em que não veja mais causa para nada, eventualmente nem para a própria vida, mas ele deve retornar para contar a sua história e revelar uma pequena parte dos mistérios que conhece que são também os mistérios da vida.

Ainda assim a história vale muito mais pelos mistérios que não revela e pelas perguntas que faz: "A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo, esse mundo se transoformou em um mistério diante de seus olhos" (KUNDERA).

Ao escritor só resta, portanto, mergulhar nos mistérios da vida ,no próprio sofrimento e até na carência de motivos para a vida para poder contar a própria história, nem que seja para depois mergulhar de novo. E este parece ser "o preço que se paga por ser escritor. A gente vive atormentado pelo passado - dores, sensações, rejeição e por aí vaí (O'Brien). Mas será que os que não são escritores não pagam o mesmo preço, embora se esforçando para esconder toda sujeita em baixo do tapete?

A arte, e a literatura não é exceção, só se faz por pessoas que tenham alguma "perspectiva de escapar de uma rotina embrutecedora e desgastante" (KLÍMA); no final, a própria arte vai de encontro à vida embrutecedora para encontrar uma outra vida, mais humana, em que o sofrimento e o regojizo tenham um pouco mais de humanidade.

Escrever é dar uma nova ordem ao caos da vida, ainda que o faça de um modo também caótico desde que submetido ao gênio do criador pois, como diz APPELFELD, "criar significa ordenar, classificar, e escolher as palavras e o ritmo que servem à obra".

E se o poeta conseguir entrar no mais profundo contato consigo mesmo ele pode revelar o sagrado, pois "o criador que sabe refletir suas experiências mais íntimas de modo profundo e verdadeiro acaba atingindo também as esferas suprapessoas ou sociais" (KLÍMA), como fez o tímido KAFKA.

O que o escritor faz é "tirar alguma coisa do nada, e isso envolve uma ansiedade extrema. Quando Flaubert diz que em seu escritório impricações e grito de angústia ele poderia estar descrevendo o escritório de quaquer escritor" (EDNA O'BRIEN).

É evidente que qualquer um pode escolher ficar longe desta vida de angústia e não perder tempo sequer para ler um "supérfluo" romance mas uma vida sem romances é uma vida vazia e sem graça, intolerável.

E até mesmo o escritor pode decidir não escrever os seus romances; mas eles vão ficar gritando, dilacerando o autor até que se torne intolerável a dor do não criar: para um escritor se os personagens não criarem vida própria é a própria vida quem vai perder todo sentido .

Para um artista contar sua arte não é uma parte da vida: é a própria vida; no final, não é o artista quem escolhe a arte é a arte quem o escolhe.

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