quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Dom


Há certos livros que mesmo não lidos são tão conhecidos que fazem parte da nossa história oral, afetiva. Dom Casmurro, de Machado de Assis, que completa neste ano 100 anos de morte, é, na literatura brasileira, a história que povoa o imaginário brasileiro e, agora, começa a habitar também o universo dos leitores da grande literatura mundo afora.

Machado é citado hoje entre os especialistas estrangeirosm como um dos gênios da literatura mundial, autor de uma ironia única e universal, e agora começa a ficar conhecido além do circuito acadêmico: o destino natural de todo grande escritor; o New York Times dedicou-lhe artigo de destaque recentemente.

Mas o Machado mais lembrado no Brasil, além do abusado, cético e sempre irônico Brás Cubas, é o Machado de Dom; o “Dom Casmurro”, apelido de Bentinho, atormentado pela imagem da traição praticada por sua amada mulher, Capitulina, vítima de um amor obsessivo.

Afinal, Capitu traiu Bentinho com seu melhor amigo Escobar? O tema é controverso e especialistas e curiosos já lhe dedicaram a devida atenção e até Tribunais do Júri, simulados, espalharam-se Brasil afora para se declarar o veredicto final. Como Promotor, apostaria na traição. Afinal, a própria descrição de Capitulina já é um libelo: Capitu, a mulher dos olhos de ressaca e do olhar oblíquo de cigana dissimulada.

E Bentinho, o suposto corno, delirante ou injustiçado, parece não ter dúvidas, como sugere Machado ao narrar, através de Bento, o drama de Otelo e Desdêmona e compará-lo com o de Bentinho e Capitu:

“- E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo – que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção...”

Machado foi buscar em Shakespeare inspiração para desenvolver a necessária tensão que envolve os desavisados apaixonados que se deixam dominar pela paixão e pelo ciúme. Para Shakespeare, é bastante claro: Desdêmona foi vítima das artimanhas de Yago contra Otelo que, fragilizado pelo seu ciúme, confia mais na imagem construída por seu inimigo ( basta lembrar do lenço) do que em sua amada mulher; em Machado a resposta sobre a existência do caso entre Capitu e Escobar fica em uma zona indefinida: delírio de um personagem atormentado ou uma imperdoável história de traição abjeta que priva Bentinho do amor do seu melhor amigo, da sua mulher e do seu filho?

Para mim, pouco importa e para Bentinho deveria importar muito menos: quando a desconfiança eclode Escobar está morto e enterrado e o pequeno Ezequiel, ainda que seja filho de Escobar (será?), ama, mais do que qualquer outra pessoa, o pai, Bentinho, que lhe criava como filho até então; para o filho rejeitado até a mãe, Capitu, era menos importante do que o pai.

Mas para Dom Casmurro o comportamento reservado, discreto e digno de sua mulher e o amor incondicional do filho, confirmados mais uma vez no fim do romance, são insuficientes para que qualquer vínculo seja preservado.

Dom separa-se do filho e da mulher, o melhor amigo fora levado pelo destino, e sua opção por uma vida solitária (questão de honra) continua 'normalmente' desde que ninguém saiba que se separou da mulher e do filho e um par de chifres: melhor tê-los longe como se nada tivesse acontecido. E será que algo aconteceu mesmo?
Capitu e Ezequiel vão para a Europa sem que Dom volte a vê-la novamente. O filho só visita o pai, sem mágoas, depois da morte da mãe, que manteve, durante todo o longo exílio, íntegra a imagem do pai.

Dom Casmurro é a grande história sobre traição do imaginário brasileiro com todas as ambiguidades: a mulher dissimulada ou a vítima probo. A questão sempre retorna porque Dom é mais do que uma simples história de traição entre homem e mulher: Dom Casmurro é a história de Bentinho, o homem que traiu a sim mesmo, e virou casmurro, o Dom Casmurro; um homem religioso que 'sabe' as aparências contam muito mais do que o amor, o segundo mandamento de Deus do homem Bento.

Mesmo um seminarista, ironicamente chamado Bentinho, filho de uma mãe ‘Santa’, como Dom fez inscrever em sua lápide, não é capaz de exercer o perdão que deveria ser praticado não uma mais setenta vezes sete vezes. Das lições do catecismo, Bentinho ficou apenas com a culpa que lhe fazia sustentar filho e mulher na Europa para que ninguém soubesse, ou suspeitasse, que Bentinho fora corno de um defunto.

Otelo mata uma inocente e se destrói em culpa; Bentinho prefere ser Dom Casmurro, um nobre sem nobreza, um ex-seminarista incapaz de perdoar até os que mais ama e por quem largou o seminário.

A história de “Dom Casmurro” é uma história sobre a hipocrisia, sobre o vazio de um homem que é incapaz de conhecer o significado verdadeiro da vida e o livro um desabafo de alguém que sabe que a vida está em outro lugar e mesmo assim aceita perder tudo (mulher, filho) e viver sozinho com sua honra preservada.

Sem solução para sua vida e suas fraquezas, Dom encontra o livro como descarrego para suas frustrações e melancolicamente assume que: “o (seu) fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das coisas que perde; mas faltou eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

Machado gostaria de ser comparado com Shakespear: ambos enxergaram matizes ocultas na natureza humana. Depois de Shakespeare o ciúme ficou mais cru, depois de Dom nossa hipocrisia está com as vísceras à mostra. Por que nós continuamos recusando em enxergá-la?

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