terça-feira, 28 de abril de 2009

Só os gregos sabiam tudo



Com alguma freqüência, a arte é colocada em oposição à técnica: artista é aquele que é capaz de improvisar livremente e não apenas repetir, mecanicamente, as regras técnicas.

O problema é que todo grande artista é, antes de tudo, uma pessoa que domina profundamente a técnica do seu ofício que aliada a sua criatividade pode transformar-se em arte.

Nem todo mundo tem o talento e muito menos a criatividade dos grandes artistas e é por esta razão que se vê com maior freqüência artesões do que artistas, professores de literatura do que grandes escritores ou, utilizando um exemplo mais familiar, jogadores esforçados do que craques.

Mesmo no futebol, um craque como Ronaldo não se diferencia apenas pela seu talento extraordinário, mas também pelo sua determinação que o tornou capaz de vencer três contusões graves para voltar a jogar e que foi moldada em treinos duros, durante os quais a grande maioria das pessoas teria desistido. Manter o estímulo para voltar a treinar, sempre, mesmo com todo talento, é um empenho de todo grande artista. A técnica não é inimiga da arte, mas sua primeira aliada.

É bastante sugestivo lembrar que Bach, o gênio da música mundial, pertencia a uma família de músicos que cultivava neste ofício há cerca de 200 anos. Picasso, o mais inventivo dos artistas do século XX, disse: "inspiração existe eu a encontro no trabalho"

Mas, como me lembrou um amigo, toda esta discussão deriva do debate grego entre apolíneos e dionisíacos (http://en.wikipedia.org/wiki/Apollonian_and_Dionysian ): ordem vs. caos, perspectivas complementar na tradição grega que se tornaram inconciliáveis ao longo da história ocidental.

Os gregos, que moldaram a estética e a cognição ocidental, nos ensinaram a pensar e estamos condenados a reviver os antigos debates gregos, como entre apolíneos e dionisíacos, muitas vezes afastados da dialética e do espírito grego, correndo o risco de se perder, o que já aconteceu com a queda do império romano e que continua a acontecer cotidianamente com a trivialização da vida e dos significados.

Foi necessário que Niezsche e, depois, Heidegger, voltassem à Grécia para nos ensinar a pensar novamente, resgatando idéias que haviam sido perdidas no caminho e re-visitar o pensamento grego é tarefa de todo grande pensador. Platão dizia, em um dos meus aforismas preferidos, que o começo é também um deus o tempo que ele perdura entre nós ele salva tudo.

Manter o espírito do começo não é nada fácil e é bastante claro que muito se perdeu com a queda da Grécia, mas muita coisa nova e instigante surgiu também, o que ampliou o universo de possibilidades.

A ciência atual, que acredito ser a mais bem acabada conseqüência do espírito grego, não cessa em mudar a nossa vida, sem que tenhamos tempo de pensar no significado destas alterações ou da própria vida. E daí porque temos que nos voltar para a filosofia e para a arte para resgatar os sentidos perdidos. Inundados de informações, estamos nos afogando, pelo menos é o juízo do Harold Bloom. Será ?

Ainda não tenho um juízo claro sobre isso, mas tenho que aceitar, com tristeza, acompanhando Guimarães Rosa, que "Só quem entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades."

Não podemos ter a esperança de conhecer a ciência e a filosofia como Aristóteles e vamos ter que nos contentar em aprender um pequeno pedaço deste universo (uma pequena parte da ciência ou da arte?) que por si só já é um universo.

Mas se nem todo mundo pode ser um craque como Ronaldo, Fenômeno, nem um grande artista, como Picasso, cada um pode, pelo menos, aprender a técnica, apreciar a arte e, quem sabe, depois de muito empenho, treino e técnica, não acabamos descobrindo o gênio escondido dentro de nós...

quinta-feira, 23 de abril de 2009

"Quem quer ser um milionário?" e Susan Boyle...


"Quem quer ser um milionário?" A pergunta, que justifica parte do sucesso do BBB e do programa de perguntas como show do milhão, com versões em várias partes do mundo, parece ser fácil e o filme, que foi a grande estrela do Oscar 2009 e um grande sucesso de bilheteria (até hoje em cartaz) usa o mesmo tema como pretexto para construir a sua história.

Jamal, o personagem principal do filme, não quer ser um milionário; ela sonha com algo muito mais simples: ele sonha em ter uma vida feliz.

E nada parece indicar que a sorte poderá sorrir para ele, órfão, miserável, "favelado", conhecedor, desde cedo, das piores aguras da vida, a sobrevidência já parece um golpe de sorte.

A perserverança de Jamal em seu sonho e no amor são as únicas coisas capazes de salvá-lo, dando-lhe forçar para suportar os piores sofrimentos, até mesmo à tortura. Jamal resiste em seu sonho até que a vida finalmente sorria para ele e o ridima de todo sofrimento. O triunfalismo do filme, porém, como o direitor faz questão de frisar, é mais um golpe de sorte.

O problema é que se a realização do sonho de cada um depender preponderantemente da sorte o mundo irá tornar-se um lugar de tormentos em que esperaremos em vão ganhar o BBB, o show do milhão ou a loteria. E o triunfalismo, prometido por Hollywood e pela literatura do consolo, irá transformar-se rapidamente em decepção e em desespero; Salman Rushide parece ter razão quando diz que um livro superficial produziu um filme superficial.

É claro que o filme, mesmo com sua solução fácil e previsível e seu roteiro esquemático, agrada e chega a ter até um leve toque de poesia ao enfatizar que o sonho de Jamal não é o milhão, mas o amor de Latika e o estrondoso sucesso do filme é compreensão: afinal, todo mundo espera ter uma oportunidade para se redimir das dificuldades e da justiças e ser salvo pela sorte, de preferência com o coração e os bolso cheios.

Jamal saí do filme muito bem, mas ninguém acredita, de verdade, na história, e a série de coincidências necessárias para que Jamal saiba as suas respostas corretas para o quizz que o permitem ser o miliónãrio são tão pouco prováveis quanto ganhar sozinho na mega-sena acumulada. Quer apostar?

E por mais que o filme possa parecer novo a fôrmula é bem antiga: o destino conduz os oprimidos à felicidade pela esperança e pela fé que os compensarão das injustiças da vida. Nem sempre é assim.

Por isto, vale a pena ver, como contraponto ao filme, a performance sincera de Susan Boyle no Show de Talentos da Inglaterra. Susan pode até querer e provavelmente vai apreciar muito o milhão que tem tudo para ganhar agora, mas o que tornou possível a realização do seu sonho foi a sua perseverança que se aliou a sorte e ao talento no momento certo.

Vendo o vídeo eu não consegui deixar de imaginar quantas vezes Susan Boyle deve ter duvidado da sua capacidade e da oportunidade que poderia jamais aparecer: talvez ela cantasse às vezes apenas para espantar os seus males, mas ele nunca deixou de sonhar o sonho dela e continuou confiando no próprio talento e continuava se comparando com Elaine Page.

Agora, se você não tem sonhos não perca tempo: jogue agora na mega-sena e se inscreva no BBB 10.

O problema é que mesmo que você tenha sorte e ganhe o seu milhão é bem provável que sua vida mude muito pouco e que tudo permanece com tão pouco sentido quanto antes. Talvez não devessemos perguntar "quem quer ser um milionário?", mas quem tem coragem de não desistir dos próprios sonhos?

Susan Boyle parece que teve e só me resta concordar com as lições do psincalista Contardo Calligaris: "O vídeo tem a qualidade de um exemplo moral: sonhar pede coragem, resistência e seriedade" (Folha de São Paulo).

Quer tirar as provas do nove, veja aqui, com legenda, o vídeo que, mesmo com um pouco de pieguice, é realmente um exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=j15caPf1FRk&feature=related

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ao vencedor as batatas


"Quincas Borba", de Machado de Assis, não é a história de Quincas Borba, o cão ou o rico 'filósofo' homônimo: é a história de Rubião, o fiel amigo de Quincas Borba.

Com a morte de Quincas, o destino parece sorrir para o pouco ambicioso Rubião que se torna subitamente herdeiro de fabulosa herança. O deslumbre dos novos ricos provoca a mudança de Rubião para a capital onde passa a exibir-se na Corte provinciana do final do Brasil Império.

Crédulo, inocente, ingênuo, caridoso e ao mesmo tempo frívolo, vazio e tolo Rubião rapidamente se perde na Corte, fascinado com uma vida e um ambiente que o encanta mas que não é capaz de compreender .

Rubião é história de um homem fraco que não domina suas amizades, suas paixões, nem seu dinheiro e é punido pelo 'destino' com a miséria e a solidão, compensadas por um delírio megalomaníaco do herói que sempre viveu em outro mundo porque jamais foi capaz de compreender, admirar e respeitar o mundo em que vivia.

O herói não domina nem sua própria vida, mas o que é trágico no livro é que mesmo os que parecem dominar a própria vida, por vezes até demais, não parecem satisfazre-se quando conquistam o que querem e mais dinheiro e mais poder acabam por tornar, quase sempre, suas vidas menos felizes, ainda que cercada de luxo e ostentação.

O amigo traidor de Rubião, por exemplo, enriquece as suas custas mas tem uma mulher infeliz e vazia e nada em sua vida tem real valor, embora isso pareca ter pouco importância para alguém que não tem qualquer caráter. De todo modo, é revelador que o ato de exibir a própria mulher bonita e seus decotes para terceiros seja o seu êxtase. Ter para ostentar parece ser o seu lema de vida.

O livro, porém, costuma ser lembrado pelo lema da filosofia humanistas de Quincas Borba "ao vencedor as batatas."

Na história de Machado, Rubião recebeu as batatas de presente do destino, empanturrou-se e terminou sem batata nenhuma. O curioso é que a vida de Rubião antes de ganhar as batatas parecia ser mais humilde e feliz do que após a vitória, em que tudo não passou de sucessivas ilusões que culminaram no delírio final.
Como conta o próprio Machado, se ao vencedor restam as batatas, aos vencidos resta apenas o ódio e a compaixão.

O problema é que uma vida com alguns amores e poucos ódios verdadeiros é a única vida que vale a pena ser vivida, ainda que com muita, pouca ou quase nenhuma batata.

Machado soube ler o Brasil império e prever o Brasil atual onde se continua pagando quase qualquer preço para poder ter a honra de repetir: ao vencedor as batatas
.
Talvez seja melhor ficar com fome, como Van Gogh, que em seus loucos delírios, pintou "os comedores de batata" que ilustram este texto. Quem já viu este quadro ao vivo dificilmente consegue esquecê-lo. Van Gogh alimentou-se das batatas que enchem o espírito, mas estas não tem preço: aos fortes à paixão da vida e da arte ensinaram Van Gogh e Machado de Assis. Sejamos bons alunos.