segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Olimpíadas: Pequim 2008



Goya, "Os fuzilamentos de terceiro de maio"
Pequim 2008: A China, Michael Phelps e o Império Russo

Nas olimpiadas de Pequim parece que dois assuntos dominam a cena: o surgimento do novo recordista mundial de medalhas de ouro (oito ouros em oito provas disputadas na natação) Michael Phelps e a guerra, quase discreta, mas muita sangrenta, entre a Rússia e a Georgia, que sob o pretexto de retomar a Ossétia invadiu a Geórgia.

Em um novo mundo, em que a China em especial, acompanhada de outros gigantes asiáticos, como o rival Japão, dos Tigres Asiáticos e da Índia, começa a ocupar um lugar de destaque, a imprensa ocidental está conferindo mais atenção aos recordes de Michael Phelps do que a vitória acachapante da China sobre os Estados Unidos no número de medalhas de ouro, o critério usual adotado para a classificação.

A vitória da China representa uma conquista do esforço coletivo de um país rumo ao terceiro milênio e, nas Olimpíadas, o "Império do Meio" fez de tudo para mostrar sua grandiosidade através das vitórias no esporte, da delicadeza e intensidade da abertura e da beleza das obras que ergueu, algumas das maravilhas do XXI milério, como o "Ninho do Pássaro", o magistral estádio olímpico de de Herzog e Meuron (http://en.wikipedia.org/wiki/Herzog_&_de_Meuron), e o Cubo d´Água da Australiana PTW.
Mas tão significativo quanto o desempenho da China é a ênfase que se tem dado às conquistas de Michael Phelps, que superou o recorde de 7 medalhas de ouro conquistadas por seu compatriota, Mark Spitz, nas olímpiadas de Munique de 1972.

Os Estados Unidos parecem querer passar para o mundo a mensagem de que o talento individual dos americanos, inclusive de apenas 1 (um) americano, é mais importante do que as conquistar coletivas da China.

Neste cenário, mais do que a rivalidade entre dois países cuja economia e os valores cada dia mais se aproximam, revelam-se as tensões contemporâneas que não podem ser colocados em baixo do tapete: na sociedade complexa convivem projetos de vida diferentes e modelos de Estado e Sociedade concorrentes e rivais.

A China está se integrando ao mundo ocidental e não teve qualquer pudor em se valer das vantagens do sistema capitalista, da tecnologia e da arte ocidental: na abertura dos jogos e na nova arquitetura chinesa são os ocidentais quem se destacam, mas a China insiste em permanecer fiel à tradição autoritária de Estado do Oriente.

Por isto, as vitórias de Phelps parecem mais importantes do que as conquistar da China: nós compartilhamos a crença na prevalência do indivíduo sobre o Estado.

As promessas de inclusão e de tratamento igualitário do Ocidente é que são as idéias que nos seduzem e a adoção apenas parcial pelo "Império do Meio" da cultura ocidental é difícil de ser assimilada e compreendida.

Daí porque se ouve tanto: a China é uma potência, mas é autoritária; a China está ficando rica, mas não respeita os direitos humanos e polui o meio-ambiente. A China foi a estrela dos jogos olímpicos de Pequim, mas Michael Phelps é quem será lembrado. Será?

O sucesso econômico e esportivo chinês não deve ser interpretado, porém, como uma vitória do autoritarismo: modelos autoritários podem, eventualmente, ser mais rápidos e eficientes mas as contradições "colocadas para debaixo do tapete" geram tantas tensões que cedo ou tarde este modelo tende a entrar em grave crise ou em colapso.

A principal vitória da cultura do ocidente é a universalização da idéia de que o Estado e a sociedade existem para garantir que cada um de nós tenha iguais oportunidades para realizar o projeto de vida que considerarmos melhor para nós mesmos.

Estados autoritários, que exageram na intervenção do Estado na sociedade, podem até assumir este compromisso formalmente e assinar as Cartas de Direitos Humanos das Nações Unidas, mas não conseguem conviver com um mundo radicalmente democrático.

O Ocidente universalizou a idéia de que não é o Estado quem decidirá o nosso destino, nem tampouco interferirá nos nosso quotidiano, dizendo o que podemos assistir, ver e dizer, salvo excepcionalmente sempre com possibilidade de se recorrer ao Judiciário para se discutir a legalidade do ato.

E não é o estado que fará estas escolhas por nós, ainda que por vezes a escolha do Estado possa parecer 'melhor': é curioso saber que o gigante Chinês do basquete, Yao Ming, (aqui gigante não é nenhuma metáfora, Yao Ming tem 2,29 m), seja filho do casal mais altos da China como parte de um projeto coletivo.

No Estado Democrático de Direito, criação do ocidente, não importa se será melhor para o Estado casar o homem mais bonito com a mulher mais bonita: quem escolhe o que fará da própria vida é o indivíduo.

O próprio destaque conferido a Li Ning ao acender a pira olímpica já parece uma mudança de mentalidade na China: foi o atleta quem se destacou para no momento mais sublime da abertura.

E, no final das contas, até mesmo um país autoritário, apesar de todas as suas contradições, pode constribuir com uma noção menos egoísta e mais solidária de sociedade, representada por grandes obras coletivas, sem renunciar reivindicação de liberdade e de igualdade do ocidente.

Mesmo com as suas violações aos direitos humanos e ao meio-ambiente, foi a China quem teve que fazer as maiores concessões para se desenvolver e ela não chega a apresentar um projeto rival de modelo econômico e social alternativa para o ocidental: nós criticamos e admiramos a China mas não queremos ser iguais a ela.

O ocidente parece esquecer as próprias lições que se esforça em 'ensinar' ao mundo, como na política internacional para os imigrantes pelos países ricos (tema para um novo texto), pelo protecionismo econômico e pela prática autoritária e belicista que muitas vezes adota.

É bastante significativo que a Rússia tenha deflagrado uma Guerra durante os jogos e ao ser criticada pelos EUA afirme, oficialmente, que um país que invadiu o Afeganistão e o Iraque não tem poder moral para lhe dizer o que fazer. Com uma diferença, na questão de Guantânamo e no tratamento dos presos, foi o próprio Judiciário Americano quem reconheceu os erros do governo americano, o que não parece ser viável na China ou na Rússia. E esta é uma diferença fundamental para uma democracia, como afirmei em texto anterior: http://eneasromero.blogspot.com/2008/07/boumediene-v-bush-redescobrindo-o.html

No xadrez da geopolítica mundial, a Guerra da Rússia contra a Geórgia pode ser explicada pela importância do acesso ao petróleo e ao gás do Cáucaso (pelo qual Hitler já nutrira sua cuspidez), pela tensão provocado pela possível entrada na OTAN da Geórgia, pelo significado político do deslocamento da Geórgia da zona de influência da Rússia para o Ocidente e pelo caldeirão étnicos que são os ex-satélites da antiga URSS, como bem explicado no artigo de David Remnick, "Boundary Issues", na New Yorker: http://www.newyorker.com/talk/comment/2008/08/25/080825taco_talk_remnick

O mundo, mais preocupado com os jogos olímpicos pode até parecer não se importar tanto com o que acontece no Caucaso, mas o significado desta guerra não pode ser negligenciado. Não vi ninguém defender que seja um retorno da guerra fria, mas esta guerra parecer atender a um chamado do império russo.

Quando o Ocidente rico pratica uma guerra de conquista e continua a dotar contra países pobres, do ocidente e do oriente, uma política que contradiz as promessas que sempre defendeu o seu discurso fica parecendo hipócrita.

Idéias como a de que a China não pode condenar os seus cidadãos à morte, mas os EUA podem; a Rússia não pode invadir a Geórgia, mas os EUA podem invadir o Iraque; a China não pode poluir o mundo, mas os EUA sim, revelam contradições graves demais e na história das olimpíadas talvez seja esta a principal história a ser contada.

As Olimpíadas da China serão lembradas por Phelps e pelas vitórias da China mas permancerão na memória pela beleza dos jogos e pelas contradições que o mundo de Putin, George W. Bush e da própria China revelam. Em alguma hora, espero que as máscaras comecem a cair e aí poderemos construir o mundo que importa: um mundo em que o talento e a dedicação individual convivam em harmonia com o respeito ao outro.

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