quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Filosofia do Direito


1 A filosofia do direito
Parte dos alunos que estuda filosofia do direito considera a disciplina “chata” e talvez preferisse que fosse abolida dos currículos das Faculdades de Direito. Os alunos e professores que se dedicam a estudá-la, porém, reconhecem a sua importância na formação do jurista e do cidadão: a filosofia nos ajuda a compreender o direito e seus fundamentos para que possamos construir uma sociedade melhor. Afinal, todo mundo espera, em maior ou menor medida, que o direito seja justo.
O presente livro pretende mostrar que a filosofia do direito não é apenas necessária, ela pode e deve ser útil e interessante, pois é a filosofia do direito quem vai se ocupar em encontrar respostas para questões como: O que é o direito? Como tornar o direito melhor? Como devemos interpretar o direito? O que é um crime? Por que todo homem deve ser tratado com igual respeito e consideração? O que é a pena? O que é o processo?
Estes são problemas que atingem a todo cidadão e que integram o trabalho dos operadores do direito; ao responder estas e outras perguntas a filosofia do direito pode fazer nosso trabalho e nosso cotidiano mais divertido e interessante, o que vale, pelo menos, uma tentativa. Não acha?

1.1 Para que serve a filosofia? “Tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência!”
A filosofia é uma disciplina surpreendente. Tão surpreendente que a primeira dificuldade que se apresenta para quem começa a estudar filosofia é identificar do que ela trata. Quando se estuda qualquer ciência, todo mundo supõe conhecer o seu objeto: o biólogo estuda o reino animal e vegetal, o médico o funcionamento do corpo e da mente humana e até a matemática parece ter um objeto facilmente identificável.
Mas, afinal, do que trata a filosofia? E por que um estudante deve estudar filosofia se até o seu objeto é de difícil apreensão? Tudo que o estudante universitário quer é aprender a sua disciplina. De modo que os estudantes de disciplinas técnicas ou científicas querem apenas aprender o seu ofício: um estudante faz faculdade de medicina para ser médico, outro de contabilidade para ser contador. E o aluno do curso de direito quer apenas ser um operador do direito, um advogado, um promotor, juiz, defensor ou procurador.
Toda ciência tem um objeto e um método próprio. Os veterinários, por exemplo, podem pesquisar a cura de uma doença fazendo experiências em laboratório, seguindo o mesmo procedimento, para descobrir a cura para um mal que atinge algum tipo de animal. A filosofia, porém, não tem um objeto próprio claramente delimitado porque é ela quem vai tratar do significado da própria ciência e do que é o significado último de cada coisa: “O caráter problemático do objeto da filosofia não decorre apenas do fato de que efetivamente não se tenha reparado nele, mas do fato de que, diferentemente de qualquer outro objeto possível, entendendo aqui por objeto o termo real ou ideal sobre o qual versa não só uma ciência, mas qualquer outra atividade humana, ele é constitutivamente latente.”[1]
E esta procura de sentidos latentes que nutre o pensamento filosófico é tão importante que foi ela quem deu origem à própria ciência que, no início da história, não se dissociava da filosofia. Os gregos eram matemáticos, biólogos, físicos e filósofos ao mesmo tempo.
Aristóteles, que era tão importante como cientista como o era enquanto filósofo, dizia que filosofia era espantar-se diante do simples. Filósofo é então aquele que fica surpreso diante do que é simples e tenta desencobrir os seus significados possíveis: “de onde viemos? para onde vamos? o que nós somos?”, o título do quadro de Paul Gauguin poderia servir, também, de inspiração para os primeiros filósofos, embora possa servir de lema para artistas e religiosos: “A religião, a arte e a filosofia dão ao homem uma convicção sobre o sentido da realidade como um todo; mas não sem diferenças essenciais. A religião é uma certeza recebida pelo homem, dada por Deus gratuitamente: revelada; o homem não alcança por si mesmo essa certeza, não a conquista nem é obra sua, muito pelo contrário. A arte significa também uma certa convicção que o homem tem e desde a qual interpreta a totalidade de sua vida mas essa crença, de origem certamente humana, não se justifica a si mesma, não pode dar razão de si, não tem evidência própria, e é, em suma, irresponsável. A filosofia, pelo contrário, é uma certeza radical universal que é ademais, autônoma, isto é, a filosofia se justifica a si mesma, mostra e prova constantemente sua verdade, nutre-se exclusivamente de evidências; o filósofo está sempre renovando as razões de sua certeza (Ortega).”[2]
A filosofia surge, então, como uma tentativa de abandonar uma explicação puramente mitológica ou religiosa do mundo para buscar uma resposta no próprio homem através do exercício da razão: o homem passa a se surpreender diante do simples e acolhe este espanto enquanto morada e este acolhimento é quem constitui a filosofia, como defende Martin Heidegger.
Mas não são apenas os filósofos que se surpreendem diante do simples: todos nós, em algum momento, nos surpreendemos diante do simples. Qual o sentido da vida? O que é certo e o que é errado? Existe Justiça? O que é a Justiça?
Podemos deixar estas perguntas de lado mas, cedo ou tarde, elas vão retornar até mesmo nas situações mais triviais[3]: Devo respeitar uma lei injusta? Devo corromper o guarda de trânsito para escapar da multa por dirigir embriagado? O Estado pode torturar um terrorista ou um bandido perigoso? Um juiz contrário à pena de morte pode deixar de aplicá-la em caso de guerra declarada no Brasil? É correto o comportamento de um médico que procede a um aborto de uma mulher e de um feto saudáveis?
Das questões mais simples às mais complexas surgem questões filosóficas que podem ser deixadas de lado ou enfrentadas: negar a existência destas dúvidas, contudo, não as elimina. O grande paradoxo é que até mesmo a pessoa mais prática e menos inclinada a abstrações será atormentada por perguntas que só a filosofia preocupa-se em responder, pois somente ela ocupa-se em fornecer conceitos, idéias, sistemas teóricos, que tornam possível a formulação de uma resposta consistente para as perguntas primeiras da vida.
É claro que podemos “deixar a filosofia de lado”, mas, nem por isso, a filosofia vai nos abandonar: um juiz que não se indaga sobre o significado da Justiça também comete injustiças, um advogado que defende qualquer causa em qualquer situação, sem se preocupar na moralidade dos meios empregados, poderá ter a sua reputação moral abalada e ajudará a tornar o local que vive pior.
No final, gostando ou não, seremos incomodados pela filosofia, pois, como reconheceu, com ironia, Aristóteles: “se se deve filosofar, deve-se filosofar, e se não se deve filosofar, deve-se igualmente filosofar; em qualquer caso, portanto, deve-se filosofar; se, de fato, a filosofia existe, somos obrigados de qualquer modo a filosofar, dado, justamente, que ela existe; se, ao invés, não existe, também nesse caso somos obrigados a pesquisar como a filosofia não existe; mas, pesquisando, filosofamos, porque a pesquisa é a causa da filosofia” (Aristóteles, Protrético, fragmento 2)
Kant, em um texto pequeno e célebre, intitulado “O que é o iluminismo”, defende que cada um se sirva da própria inteligência para encontrar as respostas corretas: “O iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprios é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.” (http://rgirola.sites.uol.com.br/Kant.htm, acesso em 28 de janeiro de 2009, às 20 h 40)
Em uma época em que as ciências, fragmentárias e parciais, pretendem apresentar respostas para quase todos os problemas humanos a procura pelas causas primeiras torna-se ainda mais urgente para permitir que a ciência seja um instrumento para a emancipação do homem e não para escravização de alguns homens por outros homens.
E para os alunos de filosofia resta pelo menos alertar para a grande ironia da filosofia constitui-se em um aparente paradoxo: mesmo que não façamos nada com a filosofia ela fará algo conosco.



1.2 Podemos não estudar a filosofia do direito? A filosofia invisível.
Algumas pessoas não querem estudar filosofia do direito por considerar a filosofia uma matéria inútil: afinal um juiz não precisa ser um filósofo para condenar o autor de um homicídio, nem um guarda de trânsito precisa saber filosofia para aplicar uma multa por excesso de velocidade. E por que um cidadão ou estudante precisaria, então, preocupar-se com o fundamento de suas ações? Basta conhecer a norma e saber o que é lícito ou ilícito. Certo?
Várias pessoas defendem, porém, que a filosofia estaria presente em qualquer decisão jurídica, acompanhando, implicitamente, a vida de cada cidadão em alguns casos e explicitamente em vários outros: e se o homicídio tiver sido realizado para acabar com a dor de um doente terminal portador de doença incurável? E se o excesso de velocidade for justificado para levar uma grávida prestes a dar à luz para o hospital?
É justo multar o marido que corre desesperadamente para o hospital para garantir a vida de seu filho e de sua esposa? Devemos condenar por homicídio o médico que ajudou uma pessoa a diminuir o tempo de vida de uma pessoa cuja vida tornou-se insuportável? Aqui, a filosofia pode fundamentar mais de uma resposta, mas não temos como responder a estas perguntas sem enfrentarmos o problema de saber por que devemos respeitar a lei, o que é certo, o que é justo, e estas são definitivamente questões filosóficas.
Em ambas as posições, contudo, tanto do que defendem a filosofia por sua importância como de seus detratores, admite-se, ao menos implicitamente, que é possível que sejamos iniciados na filosofia de modo a abandonar uma vida sem filosofia para outra em que ela passa a ser objeto da nossa preocupação como se estivéssemos saindo de fora da filosofia para o interior de seu âmbito, onde passamos a filosofar.
O primeiro grande segredo que a filosofia revela é que antes de iniciar o estudo da filosofia já nos ocupávamos dela ainda que sem o saber, pois a filosofia não é algo fora do homem; ela é inerente ao homem, que filosofa pelo simples fato de existir, como bem explica Heidegger: “A questão é que não estamos de forma alguma ‘fora’ da filosofia; e isso não porque, por exemplo, talvez tenhamos uma certa bagagem de conhecimentos sobre filosofia. Mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não ‘façamos filosofia’. Não filosofamos apenas vez por outra, mas de modo constante e necessário porquanto existimos como homens. Ser-aí como homem significa filosofar. O animal não pode filosofar; Deus não precisa filosofar. Um Deus que filosofasse não seria um Deus porque a essência da filosofia é ser uma possibilidade finita de um ente finito.” [4]
Com Descartes aprendemos que o homem sabe que existe porque pensa e pensa porque duvida na fórmula que ficou célebre: penso, logo existo; com Heidegger aprendemos que filosofamos porque existimos pois “ser homem já significa filosofar.”[5]
A questão deixa de ser, portanto, se queremos pensar na filosofia e passa a ser se vamos fazê-lo com consciência, tornado visível as questões filosóficas que acompanham o nosso pensamento.
A filosofia do direito pretende tornar visível o argumento invisível que acompanha as escolhas jurídicas dos cidadãos, legisladores, agentes públicos e juízes, como bem reconhece Dworkin “o voto de qualquer juiz é, em si, uma peça de filosofia do direito, mesmo quando a filosofia está oculta e o argumento visível é dominado por citações e listas de fatos.”[6]
Portanto, o direito e a filosofia do direito acompanham o cotidiano de todos os cidadãos de um Estado Democrático de Direito que se vêem obrigado a tomar decisões, que mesmo desconhecendo o seu fundamento, vão determinar que tipo de sociedade será construída: mais justa? Mais igualitária? Mais livre? Afinal, como reconhece Dworkin “Vivemos na lei e segundo o direito. Ele faz de nós o que somos: cidadãos, empregados, médicos, cônjuges e proprietários. É espada, escudo e ameaça: lutamos por nosso salário, recusamo-nos a pagar o aluguel, somos obrigados a pagar nossas multas ou mandados para a cadeia, tudo em nome do que foi estabelecido por nosso soberano e etéreo, o direito. E discutimos os seus decretos, mesmo quando os livros que supostamente registram suas instruções e determinações nada dizem agimos, então, como se a lei apenas houvesse sussurrado sua ordem muito baixinho para ser ouvida com nitidez. Somos súditos do império do direito, vassalos de seus métodos e ideais, subjugados em espírito enquanto discutimos o que devemos portanto fazer.”[7]
Já que não temos como fugir da filosofia talvez seja melhor um pouco mais de paciência, um pouco mais de calma e um pouco mais de alma, para nos dedicarmos a filosofar. Afinal, se a filosofia é inerente ao homem então filosofar é dar um passo rumo a si mesmo.

1.3. O que é a filosofia do direito hoje?
A filosofia geral lança questões profundas sobre o significado da fundação originária do conhecimento e da vida (metafísica), do conhecimento (lógica e onto-gnosiologia) e dos valores (axiologia);[8] a filosofia do direito é a parte da filosofia que reflete sobre a realidade jurídica.[9]
O direito determina as condutas licitas e ilícitas, estabelecendo o que é permitido, obrigatório e proibido que façamos; a filosofia do direito reflete sobre o significado do direito.[10]
A filosofia do direito, ao longo da história, transformou os problemas do fundamento do direito em seu objeto de estudo, o que justificou o surgimento de diversas teorias do direito natural, da justiça, da moral e para cada questão de que se ocupa a filosofia do direito surgiu um emaranhado de teorias para explicá-lo.
Deste modo, a filosofia do direito converteu-se em um terreno somente explorado por iniciados e eruditos, já que passou a pressupor o conhecimento de tantos e tão complexos sistemas teóricos que somente os filósofos do direito que seriam, também, especialistas em historia da filosofia do direito, poderiam compreendê-la e dialogar entre si. Afinal, o que poderia uma pessoa que não conhece as idéias de Kant, Hegel ou Aristóteles dizer?
Ao se distanciar do cotidiano dos cidadãos (e até dos juristas) e se converter em disciplina dos eruditos, a filosofia corre o risco de ser relegada ao segundo plano no momento em refletir sobre ela se tornou mais necessário.
Nas sociedades complexas do século XXI, o direito não encontra mais um fundamento previamente determinado a partir de uma compreensão teológica, cosmológico ou mesmo racionalista do direito e cada pessoa deve, por si própria, procurar compreender e fundamentar o próprio agir.
Precisamos nos servir da própria inteligência para decidir questões fundamentais, e sempre abertas em uma democracia plural, como os limites da nossa liberdade, o significado que vamos conferir a igualdade, o papel da moral e da religião em um estado laico e o papel do próprio direito.
Se o cidadão (e o jurista) não se ocuparem destes problemas, nem por isso eles deixaram de ser objeto da nossa preocupação já que terão graves consequências sobre nossas vidas,[11] conduzindo-nos para rumos não refletidos e não desejados, podendo ser até mesmo gravemente prejudiciais ao exercício pleno da nossa liberdade e contrários à dignidade, fundamento da existência do Estado, e da igualdade, idéias em defesa das quais derramamos tanto sangue ao longo da história.
O presente livro não negligencia a importância da história da filosofia do direito, disciplina indispensável para a formação do jurista, mas pretende discutir os problemas atuais da filosofia do direito para que o cidadão possa servir-se plenamente de sua inteligência de modo a permitir que a filosofia do direito seja um instrumento para repensar o direito como instrumento de emancipação do homem.
[1] ZURBINI, X. Prólogo à primeira edição. In: MARIAS, Julián. História da Filosofia, p. XXIV.
[2] MARIAS, Julián. História da Filosofia, p. 4.
[3] Trivial vem de trivium, a formação básica do homem medieval.

[4] HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia, p. 3-4.
[5] HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia, p. 4.
[6] DOWORKIN, Ronald. O Império do Direito. p. 113.
[7] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. XI.
[8] REALE, Miguel. Filosofia do Direito, p. 23-40.
[9] REALE, Miguel. Filosofia do Direito, p. 9.
[10] Segundo REALE a Filosofia “converte em problema o que para o jurista vale como resposta ou ponto assente ou imperativo. Quando o advogado invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz prolata a sua sentença e a apóia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar cumprindo sua missão de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do direito, ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma vez convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente? Por que a lei obriga? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade legal?” REALE, Miguel. Filosofia do Direito, p. 10.
[11] Como afirma RADBRUCH “As idéias não defendem nas nuvens, novamente e até a exaustão, a luta de interesses, como as Valquírias no campo de batalha; antes, como os deuses homéricos, descem ao campo de batalha, e elas mesmas imagens de força, lutam ombro a ombro com outras forças. Se, por um lado, a filosofia do direito é luta política de partidos transportada à esfera do espírito, por outro lado a luta política de partidos apresenta-nos, ao mesmo tempo, como uma grandiosa discussão da filosofia do direito. Todas as grandes transformações políticas foram preparadas ou acompanhadas pela filosofia do direito. No início, encontra-se a filosofia do direito, no final a revolução.” RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, p. 17.

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